ALIANÇA INTERNACIONAL DE CATADORES

A Aliança Internacional de Catadores é um sindicato de organizações de catadores que representa mais de 460.000 trabalhadores em 34 países
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publicado por
Escrito por Manuel Rosaldo

Região

País Brasil

março 28, 2017

Traduzido por Regiane D’Almeida


A criminalização dos catadores autônomos – uma crise de direitos humanos
Escrito por Manuel Rosaldo. Sul21.com.br. 03/19/2017

Foto: Manuel Rosaldo.

Tratando-se de política de reciclagem, Porto Alegre é uma cidade precursora. Em 1986, Porto Alegre tornou-se a primeira cidade brasileira a reconhecer legalmente uma organização de catadores. Em 1990, inaugurou no Brasil, a primeira rota pública de reciclagem a com contrição de unidades de triagem e inclusão autogestionária de catadores, fazendo de Porto Alegre uma referência mundial na inclusão de catadores. Em reconhecimento à sua liderança, Porto Alegre foi escolhida como cidade anfitriã para receber o primeiro encontro do Rede Latino-americano de Catadores em 2005, envolvendo catadores de 17 países no continente. E agora no ano passado, Porto Alegre tornou-se a primeira capital brasileira a proibir a incineração, uma política que protege tanto o meio ambiente quanto a fonte de renda dos catadores.

Na última sexta-feira, entretanto, Porto Alegre ganhou uma condecoração mais ignominiosa: tornou-se a primeira cidade brasileira a proibir a circulação de carrinhos e carroças, efetivamente criminalizando a figura do catador de rua. A lei de proibição criada em 2008 deveria ter entrado em vigor em 2016, após a cidade oferecer recursos com o objetivo de auxiliar na transição dos catadores para profissões alternativas. Contudo, um adiamento de seis meses foi concedido para a implementação da lei em reconhecimento ao fato de que a cidade nunca forneceu os recursos prometidos. A proibição ameaça os recursos de sobrevivência de mais de 7.000 famílias vulneráveis em meio a uma taxa recorde de desemprego. Isso representa nada menos do que uma crise dos direitos humanos, não só violando o direito de trabalho, com também ameaçando o de comida, de roupa e de abrigo, como estipulado nos artigos 23 e 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos artigos 5, 6 e 7 da Constituição brasileira. Vale ressaltar que o catador, incluindo o “puxador de carrinho e carroça”, trata-se de uma atividade legalizada desde 2002 e podemos encontrá-la no Código 5192-05 da Classificação Brasileira de Ocupações.

Foto: Manuel Rosaldo.

Sou um sociólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley e tenho conduzido pesquisas extensivas em políticas de resíduos sólidos inclusivas no Brasil, Estados Unidos e Colômbia. Na semana passada, o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis e o Fórum Independente de Catadoras e Catadores de Porto Alegre me convidaram para ir a Porto Alegre a fim de atuar como observador internacional dos direitos humanos, justo nos dias anteriores à lei entrar em vigor. Visitei cinco das vilas de Porto Alegre onde reuni testemunhos de 25 catadores que estavam assustados e enraivecidos diante dessa lei noticiada. Surpreendentemente, nenhum dos catadores que conheci tinha sido incluído nos programas da cidade de treinamento para profissões alternativas.

Na quinta-feira, acompanhei centenas de catadores quando marchavam pelo direito de continuar a exercer sua profissão e de ser reconhecido e remunerado por seu trabalho. Primeiro, marchamos até a Câmara dos Vereadores, e para minha surpresa, os líderes dos 12 partidos, um a um, expressaram o seu apoio pela causa dos catadores e criticaram a lei de proibição dos carrinhos. Em seguida, marchamos para a Prefeitura, onde um representante do prefeito prometeu que a polícia usaria somente medidas “educativas” e não “punitivas” contra os carrinheiros.

Foto: Manuel Rosaldo.

Foto: Manuel Rosaldo.

Foto: Manuel Rosaldo

Foto: Ana Paula Rocha

Foto: Manuel Rosaldo

Na verdade, a aprovação demonstrada por membros do poder público foi um progresso inegável. Entretanto, a proibição permanece no papel, e apesar das promessas do prefeito, vários catadores alegam terem sido impedidos pela polícia na semana passada. Ainda mais transtornos: vereadores de outras cidades brasileiras, como Belo Horizonte, estão propondo copiar essa lei. Em São Paulo, ainda não aprovaram nenhuma lei contra os carrinheiros, porém há registros recentes de apreensões de carrinhos no centro da cidade e duas associações de carrinheiros receberam uma notificação para saírem do seu espaço.

Os catadores de Porto Alegre estão buscando o diálogo com as autoridades e o apoio das comunidades. Contudo, os catadores prometem não aceitar essa lei passivamente e também ameaçam bloquear as vias principais da cidade. Como disse um dos catadores: “Se os carrinhos não puderem circular, os carros também não.” Dado ao fato de que protestos similares irromperam em julho passado, esta ameaça não deveria ser considerada em vão.

Foto: Ana Paula da Silva Junkherr.

Foto: Ana Paula da Silva Junkherr.

Infelizmente, tentativas de criminalizar os catadores são um lugar-comum em todo o mundo. Os resultados são previsíveis: nunca conseguem obter sucesso por completo em eliminar os catadores, somente em exacerbar sua marginalidade, pobreza e perseguição. Frequentemente, poderosos interesses econômicos estão por trás dessas tentativas de criminalização, não só incorporadoras imobiliárias de áreas urbanas que procuram higienizar as ruas das cidades a fim de aumentar os valores imobiliários, mas também empresas privadas de resíduos que desejam usurpar a reciclagem. Inclusive, é possível que muitas pessoas baseadas genuinamente em equívocos quanto aos catadores e seu papel na sociedade venham a apoiar essas leis. Abaixo, ponho em xeque alguns dos mitos mais comuns. A lista é inspirada por uma lista parecida feita pelo autor, Martin Medina, no livro Os Catadores do Mundo de 2007.

10 mitos sobre catadores

1.) Catadores autônomos oferecem poucos benefícios à sociedade. Catadores autônomos coletam quase 90% do material reciclado no Brasil e ajudaram o país a conquistar o recorde mundial de 98.2% da taxa de recuperação de latinhas. Com o devido apoio, eles também poderiam alcançar tais índices quanto a outros materiais. O trabalho dos catadores oferece consideráveis benefícios econômicos e ecológicos: redução no custo de transporte de resíduos, economia de espaço de armazenagem nos aterros, diminuição na quantidade de matérias-primas virgens necessárias à produção e abrandamento de mudanças climáticas.

2.) Cidades “modernas” não têm catadores autônomos. Os catadores autônomos atuam praticamente em toda grande cidade do mundo, incluindo aquelas do hemisfério norte. De fato, 21 países cruzando a América do Norte, Europa e Ásia cobram uma pequena taxa sobre vasilhames e latinhas, a qual é devolvida aos catadores e consumidores quando retornam os mesmos para os centros oficiais de reciclagem. Como exemplo, minha cidade natal, São Francisco, Califórnia, que conta com as mais avançadas tecnologias de reciclagem, leis e programas de educação pública do mundo – também possui milhares de catadores de rua. A combinação deles com rotas de reciclagem oficiais tem ajudado São Francisco a alcançar uma taxa de reciclagem acima de 80%, estando entre as mais altas do mundo.

3.) A reciclagem de rua não é eficiente. Em um artigo intitulado “A Eficiência da Informalidade”, um grupo de cientistas ecológicos da Universidade da Califórnia em Berkeley comparou a redução de gases de efeito estufa gerada pelos catadores de rua na Colômbia com a de empresas privadas de reciclagem. Foi constatado que os catadores apresentaram, de longe, um desempenho superior ao das empresas devido essencialmente ao fato de que eles não só reciclavam, mas também recuperavam muitos artigos para reuso ou venda.

4.) Catadores autônomos causam congestionamento de trânsito. O trânsito é causado pelo mau planejamento urbano e transporte público deficiente, não pelos catadores que têm tanto direito ao uso das vias públicas quanto qualquer pessoa. Uma forma de aliviar o congestionamento é criando ciclovias que não só incentivam as pessoas a pedalar, mas também são usadas por catadores e vendedores ambulantes.

5.) Catadores abusam dos animais. Embora a escala de sofrimento animal imposta pela indústria da reciclagem seja insignificante se comparada com a das indústrias como a da criação intensiva, não se pode negar que os carroceiros, às vezes, não cuidam devidamente de seus cavalos. A solução está em prover aos catadores os recursos que necessitam para cuidar de seus animais, ou oferecer meios alternativos de transporte. Como exemplo, a cidade de Bogotá proibiu o uso de carroças puxadas por cavalo em 2012, mas em contrapartida forneceu 3.000 caminhões aos carroceiros.

6.) Catadores são delinquentes e criminosos. Muito pelo contrário, vários estudos mostram que a catação evita que indivíduos muito carentes se voltem para a criminalidade. Por exemplo, a economista Bevin Ashenmiller verificou as taxas de criminalidade de 10.000 cidades norte-americanas entre 1973 e 2001. Ela constatou que as taxas de pequenos delitos diminuíram quando as cidades implementaram “A Lei do Vasilhame Retornável” que incentivou a reciclagem informal.

7.) As cooperativas de reciclagem resolveram o “problema” da reciclagem de rua. Atualmente, as 17 cooperativas de reciclagem de Porto Alegre empregam cerca de 600 catadores. As cooperativas são uma maravilhosa iniciativa, porém no momento não têm a capacidade de absorver os 7.000 catadores autônomos. Além disso, as cooperativas operam com a tremenda insuficiência de fundos e matérias, e como resultado, frequentemente, muitas vezes os cooperados ganham menos que um salário mínimo. Se a cidade aumentasse o apoio às cooperativas e começasse a contratá-las para oferecer educação ambiental e serviços de coleta seletiva, elas se tornariam uma alternativa mais atraente para os catadores autônomos.

8.) A catação de rua é quase a pior profissão que existe. Muitos dos catadores que entrevistei em Porto Alegre e em outras cidades relatam ganhos superiores ao salário mínimo. Muitos já tinham trabalhado em outras profissões anteriormente, porém acabaram preferindo a reciclagem por experienciar o aumento nos ganhos, segurança, flexibilidade e autonomia.

9.) A reciclagem é uma fonte de vulnerabilidade. A reciclagem é um recurso que populações vulneráveis forjaram no decurso de muitas gerações com seu trabalho manual e intelectual. As origens da vulnerabilidade do catador são as mais amplas: hierarquia de classes, a opressão de gênero e raça bem como a inaptidão do Estado. A solução é a adoção de uma política social mais justa, não a criminalização.

10.) Não é possível melhorar as condições de trabalho dos catadores enquanto permanecerem nas ruas. Muitas cidades encontraram formas de reconhecer e remunerar o trabalho dos catadores de rua. Em Bogotá, Colômbia, funcionários do governo local identificaram 18.000 catadores autônomos por meio do censo e então lhes deram uniformes em reconhecimento ao serviço público que prestavam. Além disso, Bogotá realiza pagamentos bimensais aos 13.000 catadores tendo como base os materiais que eles vendem aos estabelecimentos credenciados. A cidade paga aos catadores via mensagens de texto com códigos que são resgatáveis nos caixas eletrônicos.